20131105

Sobre correr entre escombros.

Vale a absoluta que cresceu aqui conjugada, o que o mar traz, o mar toma. Absoluta que viveu junto com o pequeno que ao ver qualquer concha fora de seu lugar corria desesperadamente para jogá-la de volta de onde nunca havia ter saído. E a absoluta também é verdadeira em fluxo contrário, o que o mar leva, ele devolve. E nisso uma corrida pós-ressaca marinha pode nos contar nos íntimos detalhes. Sempre. Infalível, incômoda e sem forma. Entre o saltitar, a dor na panturrilha e a chuva que escorre pelo rosto a melhor e a maior apresentação do quanto espaçoso nós somos. Do quanto preguiçoso e mesquinhos nos tornamos em nossa evolução como humanidade. Como fingimos não ver o que está diariamente sob nossos olhos. Uma aula de primário sobre o quanto ineficientes são os serviços de coleta sanitária e de lixo em nossas comunidades. Uma aula de espiritualidade ao deixarmos de olhar somente para o que nos interessa. Uma aula de autoconhecimento para nos reconhecermos no lixo que somos. E de lá tudo pode ser catalogado e reconhecido, exatamente como está, estava ou estará na sua casa, no seu trabalho, na sua vida. Da mais correta e íntegra a mais desonesta e corrupta. Caminhãozinho de plástico, cadeira, almofada, forminha de gelo, tampa de isopor, pé de cama, pé de cadeira, pé de cabra, pé de boneca, capacete, madeira, madeira, madeira, madeira, madeira e madeira que dariam para mobiliar uma casa (quem sabe no futuro), dinossauro de plástico, pote de plástico, colher de plástico, rodinha de plástico, garrafa de plástico, pratinho de plástico (de um aniversário de alguém que jamais vai conhecer), pinguim, pneu, desodorante rollon, desodorante aerosol, desodorante em creme, produtos de beleza (que trazem a beleza para alguns e deixam a feiura para milhares), pacote de salgadinho, salgadinho, alga, alga em simbiose com placa-mãe de computador (em uma mutação digna de filme de terror), água-viva, tronco de árvore, caneta, lápis, borracha, tênis, sapatos, sandálias, sapatos de gala de todas as numerações, cores e formas possíveis (em sua maior quantidade referentes ao pé esquerdo), botões, camisas, tristeza, melancolia e crianças jogando bola entre os escombros (pós-apocalípticos de realidade que deveria ser só ficção). Respira. Expira. Não pára. Fôlego. Devia faltar fôlego neste momento. Mas não, são tantas histórias, tantas vidas representadas em cada uma daquelas milhares, milhões de partes de vida agora usadas, largadas e jogadas para o azar daqueles que ali estão. Para o azar do mar, aquele mar que a dona do pote sorvete homenageou com lixo e só vem duas vezes por ano visitar. E ainda reclama, esse lugar é uma sujeira. Esquece o que acontece depois dos dois nós que dá na sacolinha do mercado e bota na lixeira. Finge que não vê a sua vida espaçosa transbordando na borda de sua casa rumo ao mar, que sem culpa recebe e recebe e recebe tudo que deixamos de querer. Mas devolve, em escombros, restos de nada para dizimar de vez qualquer resto de esperança que possa ter na humanidade. As gaivotas passam soberanas buscando restos de vida em meio aos fragmentos de morte manufaturada  E quando a areia fofa chega novamente, você volta a lembrar da sua vida, da falta de fôlego, da dor na panturrilha e sem olhar pra trás pode enfim esquecer tudo o que viu. Esquecer tudo, fingir que não viu e voltar para sua vidinha. Na areia fofa, limpa e brilhante seu pé afunda na realidade que acha viver, pode enfim se lambuzar no ego de sua atividade (e quem sabe finalmente tirar uma foto bonita para dizer quantos quilômetros correu em competição infantil e sem fim que te espera ao chegar em casa na tela do seu computador). Computador de plástico que com seu processador, memória, placa-mãe será encontrado daqui uns anos entre as algas, longe dos desejados votos de admiração de seus amigos ao clicar de botão. Que com seus computadores de plástico com processadores, memória, placas-mãe estarão ao relento entre as algas no futuro-presente da obsolência programada de tudo, inclusive de nós mesmos. O mar leva, mas traz. E dessa forma você pode dividir as pessoas do universo, aquelas que fingem nada ter visto quando chegam na areia fofa, buscando  o melhor enquadramento para esconder as tragédias diárias que carregam nosso nome no roda pé (com copyright e certificado de patente), e aquelas que não esquecem e buscam em cada fragmento de escombro a resposta para a pergunta de suas vidas. Uma panela. Um pote de maionese. Um coco. Um toco de madeira vindo de um navio chinês. Duas traves. E dez sábios buscando a sabedoria de forma silenciosa. Sem documentar. Sem testemunhar. Sem precisar provar que estiveram lá para ninguém, porque a única coisa que importa é: estar lá e jamais esquecer. Ou finalmente virar escombro.

20131004

Das terras altas.

Era uma vez um jovem magnata russo com seus pouco mais de 30 anos de idade que pretende revolucionar o modo de vida e as questões sociais/filosóficas do homem moderno, como outrora fizeram Arthur C. Clarke e Isaac Asimov em sua literatura sci-fi. Partindo da máxima de que “a vida imita a arte”, Dmitry é fundador da iniciativa 2045, a qual busca a imortalidade humana através de quatro metas tecnológicas, denominadas Avatares, nome que cai com uma luva ao significado da empreitada.
O estágio definido como Avatar A, datado ao intervalo 2015 – 2020, será constituído por andróides controlados a distância por uma interface computacional que funcionará como seu cérebro, sua central de comando. Segundo a iniciativa, tal etapa contribuiria para a sociedade com a possibilidade de auxiliar em trabalhos de alta periculosidade, eliminando riscos humanos. Componentes deste andróide também poderão ser utilizados na medicina de reabilitação, trazendo inovações e alternativas para o mundo das próteses.
O Avatar B (2020 – 2025) consiste na criação de um sistema de suporte a vida autônomo, capaz de ser ligado a um cérebro humano. A separação definitiva da mente e corpo proporcionará a continuidade da vida de um cérebro intacto em um corpo robótico; praticamente um Krang do mundo real (sim, aquele das Tartarugas Ninja, lembra?).
O terceiro estágio, Avatar C (2030 – 2035) consiste na criação de um modelo artificial da mente e consciência humana. As revoluções proporcionadas por esta etapa estariam ligadas a possibilidade de se transferir uma consciência única, singular, para um meio artificial. Pode chamar o William Gibson, que esse é o nosso Dixie Flatline do mundo moderno (do livro Neuromancer, 1984)!!!
E finalmente chegamos a 2045, o marco definitivo desta empreitada futurista. O Avatar D consiste na liberdade plena da consciência humana, representada na forma holográfica ou assumindo os corpos que bem quiserem (ou puderem pagar). Logicamente as conseqüências destes avanços vão muito além da tecnologia, gerando um halo de influência que vai da medicina a filosofia, das questões ambientais aos direitos humanos (e robóticos, por que não?).
Mas neste momento você deve estar pensando: “Isso é pura especulação, pura utopia, pura ficção científica de um magnata com muitos 50 bilhões de dólares para gastar”; e é compreensível, tranquilamente. Por outro lado, existem dois pontos que colaboram para a credibilidade da iniciativa. O primeiro é que existem muitas pessoas interessadas nesta tecnologia, não faltará capital para financiar o projeto, visto que o sonho da imortalidade abrange o sonho de todos (principalmente daqueles que tem muitos mi/bi/trilhões para serem gastos).
O segundo, e mais importante, está condicionado pelo corpo técnico que apóia a iniciativa. Nele constam especialistas de diversas áreas do conhecimento, da robótica a filosofia, passando por líderes espirituais e geneticistas. Entre eles podemos citar o Dr. Hiroshi Ishiguro, famoso por seus estudos relacionados a robóticas e as interações humanas, só para ser um exemplo.
Mais um importante passo foi dado por Dmitry e seus consultores no dia 11 de março de 2013: a publicação de uma carta aberta destinada ao Secretário Geral das Nações Unidas, Ban Ki-Moon.
Caso tenha ficado curioso com o desenrolar da história e estiver de bobeira, nos próximos dias 15 e 16 de Junho acontecerá em Nova York, no Lincoln Center, o congresso internacional Global Future 2045, onde boa parte dos envolvidos na iniciativa estará discutindo nossos próximos 30 e poucos anos. Para os demais, como eu, ficamos aguardando os próximos capítulos.

20130416

Skynet.

Não preciso ser vidente, sensitivo ou utilizar de práticas em rabdomancia para apostar que o texto que está lendo neste momento encontra-se à deriva em meio ao mar de informação que as abas do seu navegador podem suportar. E neste balançar da rede de computadores, a máxima de que “informação é poder” é diariamente colocada à prova, muitas vezes além da nossa capacidade cerebral de absorção. Afinal, a rede é de computadores, mas a informação que circula e é consumida é essencialmente humana. Bem, não totalmente.
Conheça a RoboEarth (http://www.roboearth.org), uma rede mundial destinada a troca de informações entre robôs. Com uma proposta audaciosa, baseada na troca de informações por máquinas, os criadores da rede assumem outra máxima dos nossos tempos, a de que a “experiência é o melhor professor”.
Você deve estar balbuciando que nada disto passa de mais uma utopia, sinopse de uma nova série do Exterminador do Futuro ou enredo de uma obra literária cyberpunk, mas não.  Com dados armazenados em nuvem e em linguagem especialmente destinada às máquinas, a rede mantém dados compartilhados por máquinas e humanos. A proposta da RoboEarth engloba  mapas de navegação, rotinas de tarefas, reconhecimento de modelos, softwares de componentes em suas versões mais recentes, entre outras atribuições destinadas ao público robótico.
O engine de armazenamento em nuvens da RoboEarth, graciosamente apelidado de Rapyuta (nome originado do longa O Castelo no Céu do mestre da animação japonesa Hayao Miyazaki), é uma plataforma open source com a promessa de facilitar a compreensão  que as máquinas tem do nosso mundo. E esqueça a futurologia, pois Rapyuta já está no ar, tecnologicamente falando, operando em plataforma Apache (http://api.roboearth.org).
Outra expectativa é de que a rede seja responsável pela diminuição dos custos no desenvolvimento dos robôs, facilitando o acesso de dados, sejam estes fornecidos por máquinas em atividade, como aqueles novos, desenvolvidos por cérebros humanos.
Em um momento em que as discussões a respeito do compartilhamento da informação estão cada dia mais em evidência, nas suas diferentes manifestações ideológicas, é a vez dos seres robóticos entrarem na jogada. O primeiro passo da iniciativa RoboEarth foi dado, nos mantendo longe de fotos de robôs tiradas no espelho, mas em aproximação definitiva da ficção científica clássica, na qual robôs farão cada vez mais parte do nosso cotidiano. E não preciso de dotes psíquicos para afirmar isto a ninguém.

20130314

Ciro.


20130116

Inflável.

Era pouco mais de meio-dia, fomos ao shopping naquele esquema "foca direto pro cinema e pega uma boa cadeira", mas logo na entrada tivemos nossa atenção roubada por três bonecos aleatórios de uma yogurteira da vida se preparando para sua épica jornada de animar a criançada. Bonecos daqueles com um cidadão no cockpit, envolto por um mar de ar (nitrogênio + oxigênio + gás carbônico + vapor de água + gases nobres + outros não citados, mas não menos importantes elementos e moléculas químicas) impulsionado por uma ventoinha a bateria, praticamente ao melhor estilo monstro de marshmallow destruindo a metrópole. Eram três, de três cores primárias (no esquema espectral da classificação): azul, verde e amarelo; assim graciosamente ordenados da esquerda para a direita. Bem, nesse momento em que íamos ao cinema, eles estavam se preparando e a ansiedade dos pequenos (e talvez, futuros hipertensos) já era grande, mas os três seguiam inertes, enquanto o sopro da vida, regado a 12V, os preenchia. Na volta do A Vida de Pi,, naquele esquema "foca na saída pra fugirdo ar condicionado e pegar o clima de chuva" nos deparamos com os três reis magos da animação infantil dançando freneticamente, mas sem perder a elegância ou sair algebricamente do seus locais. Logo notamos que não estava tudo bem: o verde, o central, dançava, agitava, mas também murchava lentamente, definhava, se esmilinguia, no sentido não mimercologista da palavra. Não teve jeito, paramos e ficamos hipnotizados pela luta travada: vida versus destino, na forma de uma dança, a última dança naquela tarde chuvosa. Um ar de comoção e tristeza  arrebatou  a todos no recinto, enquanto mais e mais paravam para observar a cena. Mas o verde, não parava, murchava e dançava como alguém que fadado a morrer não se abatia até o seu último suspiro. As próprias crianças perderam o interesse pelo amarelo ou o azul e paradas observavam cada milímetro cúbico de um Dollynho gigante desaparecendo nas suas frentes. Duas ou três 'caras de choro' puderam ser catalogadas facilmente naqueles dois ou três minutos de tensão. Enquanto os outros dois, estes sim representantes das cores primárias do reino cromático, se remexiam sem parar e ter um olhar especial pelo seu semelhante que partia, o Verde diminuía lentamente seus movimentos até uma dança lenta e hipnotizante no balangar dos seus joelhos. Seguiu então seu último suspiro e talvez ali, inerte em meio a indiferença de seus iguais, ele possa ter visto no seu último frame de vida as crianças (materiais e interiores) tristes, abaixando suas cabeças em reverência àquele que partia, seja quem ou o que fosse.